Martha Medeiros
Estava conversando com uma amiga, dia desses. Ela comentava sobre uma
terceira pessoa, que eu não conhecia. Descreveu-a como sendo boa gente,
esforçada, ótimo caráter. “Só tem um probleminha: não é habitada”. Rimos. É uma
expressão coloquial na França — habité — mas nunca tinha escutado por estas
paragens e com este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga que, de forma
parecida, também costuma dizer “aquela ali tem gente em casa” quando se refere
a pessoas que fazem diferença.
Uma pessoa pode ser altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática,
mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros pra dormir. Uma pessoa
habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que
satanás esteja longe de ser má referência. Clarice Lispector certa vez escreveu
uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em Berna, onde morava
na ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos de fada onde tudo funciona,
onde todos são belos, onde a vida parece uma pintura, um rótulo de chocolate.
Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo.
Retornando ao assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas, de fato,
por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de
indagações, angústias, incertezas, mas não são menos felizes por causa disso.
Não transformam suas “inadequações” em doença, mas em força e curiosidade. Não
recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com transgressões, não adotam
as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São pessoas que surpreendem
com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma disposição para serem
bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela verdade pessoal que
defendem. Além disso, mantêm com a solidão uma relação mais do que cordial.
Então são as criaturas mais incríveis do universo? Não necessariamente.
Entre os habitados há de tudo, gente fenomenal e também assassinos, pervertidos
e demais malucos que não merecem abrandamento de pena pelo fato de serem, em
certos aspectos, bastante interessantes. Interessam, mas assustam. Interessam,
mas causam dano. Eu não gostaria de repartir a mesa de um restaurante com
Hannibal Lecter, “The Cannibal”, ainda que eu não tenha dúvida de que o
personagem imortalizado por Anthony Hopkins renderia um papo mais estimulante
do que uma conversa com, sei lá, Britney Spears, que só tem gente em casa
porque está grávida.
Zzzzzzzzzzz.
Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres habitados e ao mesmo tempo
inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos fascinar e nos manter
acordados uma madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que é melhor ainda.
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